quinta-feira, 22 de julho de 2010

Relatório da obra "Caim", de José Saramago

[OK, já faz algum (considerável) tempo que lemos o livro, mas aqui está, finalmente...]


O falecido autor, com um propósito que a princípio se nos mostra inescrutável, resolve escolher uma dentre a extensa gama de múltiplas figuras alegóricas que atuam como personagens no "Livro dos Disparates" para servir de norte à narrativa. Na realidade, por motivo que vai se tornando um pouco mais claro ao longo da história (em que pese o caráter meramente especulatório de qualquer conclusão a respeito, eu diria apenas para fins de interpretação conforme, aos moldes do que fizemos no nosso debate), Saramago fixa Caim como pivô de sua releitura, por meio de deus e de uma marca no meio da testa do dito mortal.


Embora eu não soubesse disso em razão da minha quase nula cultura bíblica (e que vergonha), Caim de fato recebe um sinal físico de Deus [redação oficial], evento que marca a sina que lhe destina o Criador, na ocasião em que este toma conhecimento do assassinato de Abel. No original, o propósito reside na estrita punição eterna de Caim, a quem só resta andar vagabundo por aí, não podendo sequer ser morto, sob pena de o homicida receber castigo sete vezes mais grave (o porquê do número? Maneirismo divino...). E assim a história de Caim encontra desfecho em sua descendência, até onde me consta não se voltando a contemplar o que restou do errante irmão ingrato.

Ora, que oportunidade interessante, deve ter pensado Saramago, para completar a história do personagem perdido. Uma espécie de conto inacabado do Antigo Testamento.


Foi o que ele fez, deveras. E aí encontro o primeiro motivo para a eleição de Caim, se é que isto importa sumariamente ao relatório, não obstante explico mesmo assim: uma significativa falha narrativa por parte dos glosadores da Bíblia, evidente erro de continuidade, e por culpa de deus. Se ele pelo menos não tivesse mencionado que o sujeito não poderia morrer, presumir-se-ia o óbito; mas nem isso. Vislumbra-se aí pano para manga e o primogênito vira protagonista e título da obra.


A quem parecer simplista a conclusão (pois ela é), cabe mencionar o que chegou a ser tratado em debate (e que citei acima) como a causa para a escolha de Caim, que parece se tornar mais clara ao leitor à medida que a trama de desenvolve.
Não se esqueça que uma das principais temáticas abordadas pelo autor em "Caim" é exatamente a contradição (estilo cara-de-pau) no comportamento de deus, um contraste entre o bondoso, criador, fonte de misericórdia; e o juiz dos homens e dos tempos, punidor, inquestionável na mais patente das injustiças. Isto é, considerando que o núcleo narrativo de Caim – ou seja, o assassinato de Abel em razão de uma das contradições de deus – traduz perfeitamente o propósito crítico de Saramago, não poderia haver figura bíblica mais adequada ao mister. Isto porque é a partir desta contradição que os demais episódios serão descritos e observados através de lente vermelha de Caim.

Deve-se, contudo, descartar de pronto a ideia de que nosso herói atua como mero espectador dos fatos que presencia ao longo de sua peregrinação. Para isso, basta lembrar do papel decisivo que ele assume ao evitar que Abraão mate o seu filho Isaque em sacrifício a deus, determinando desta forma o rumo da humanidade conforme se conhece hoje.


Pois bem. Fato é que, profundamente contrariado pelas atitudes de deus, mergulhado em questões de cunho quase existencial, Caim parte a lugar nenhum, encontra pelo caminho um parceiro burro por cuja companhia passaria a dar a vida, lança as bases de sua descendência nas terras de Nod e adquire o indigesto costume de mudar de presente a todo momento. Na realidade, a mudança de presentes é explicada por Saramago em interessante digressão sobre a natureza do tempo, o que aproximou de certo modo as reflexões sobre "Caim" das questões levantadas no debate do filme "Quem somos nós?", realizado lá em casa. No atinente à lógica da história, a narrativa de "Caim" é marcada essencialmente pelo rompimento da linearidade projetada sobre a noção que fazemos de "tempo", o que decerto permite ao leitor uma leitura confortável, menos temporal, mais temática e coerente com o desenvolver dos pensamentos do protagonista, a partir dos quais se produzem as críticas do autor.

Em razão do que melhor me socorre à memória no momento, ilustro com o episódio de Sodoma. Nele resta bem claro o alvo de Caim e de Saramago: na ocasião, deus decide pôr fogo na cidade por verificar a peculiar preferência sexual de seus habitantes, sem atentar ao fato de lá haver "inocentes", as crianças e as mulheres que em nada contribuíram para a infração ao ordenamento divino praticada pelos homens. A partir disso, Saramago questiona tanto a prerrogativa de deus para ingerir na vida privada dos homens quanto, de modo ainda mais incisivo, os princípios da justiça divina. A destruição de Sodoma, presenciada por Caim, acaba se tornando um dos argumentos mais utilizados pelo personagem/autor para colocar em xeque a legitimidade de deus.

Outro tema interessante, que também ocupou boa parte do nosso debate, foi a “inescrutabilidade” dos desígnios de deus, amplamente abordado na obra. O fato de não se poder sequer questionar as decisões tomadas pelo todo-poderoso acaba por representar, conforme sugere o autor, imperativo de idiossincrasia e permissividade aos seus atos, a partir daí pouco importando até que ponto se encontra revestida de razoabilidade a Providência.

Acredito ser este o respaldo destinado a manter a distância entre deus e o homem, aquele no poder supremo, este na sua eterna subalternice. E culpa de quem?, pergunta-se. Do próprio homem, que criou Deus à sua imagem e semelhança (e mais uma vez emerge questão mencionada no filme), atribuindo-lhe prerrogativas que mais tarde viriam a lhe autorizar uma série de absurdos como aquelas descritas no livro, bem como tantas outras que se observam do lombo do hipopótamo.

Em verdade a questão fundamental é saber o que queremos é deus ou Deus, conforme mencionado na oportunidade dos debates.

Tratando-se deus da projeção humana, há que se concluir que nele subsistem os defeitos, vícios e fraquezas do próprio homem. Façamos uma leitura mais atenta do significado do Novo Testamento em relação ao seu predecessor, e nessa relação será possível identificar a dialética que alimenta a nossa existência. E sua expressão máxima se consubstancia exatamente na parábola de Jesus Cristo, no sentido mais elementar de sua filosofia, despido de qualquer sentido religioso. A partir deste ponto de vista, acredito não restar dificuldade para definir o que vem a ser, enfim, o termo de Caim, o ponto final à sua discussão perpétua: reconhecer em deus a fraqueza presunçosa do homem e no Homem a eterna sabedoria de Deus, numa busca incessante pela legitimação da própria felicidade (propósito universal), em todos os seus aspectos. Poderíamos começar seguindo o exemplo do "Filho do Homem", que veio à Terra redimir os pecados de deus.

domingo, 11 de julho de 2010

C²: Cinema e Ciência


foto: mariana de matos

Em decorrência do debate do livro do nosso querido José Saramago, "Caim", pelo questionamento de deus que nos foi trazido, viemos a nos deparar este mês com o filme "Quem somos nós?"(2004, EUA).

Esta obra em formato de semi-documentário questiona não quem somos, mas sim o que sabemos, a condizer muito mais com seu título original: "What the b**** we know?". Assim, põe a protagonista Amanda (Marlee Matlin) em uma posição de confronto com a sua forma de acesso ao conhecimento, ao "real", elementos cujo questionamento não cessou durante o decorrer do filme e de nosso debate. Afinal, o que parece sólido, objetivo, perpassa tal qual nossos pensamentos e sonhos por nosso cérebro e, portanto, tem sua constituição alterada por uma sensibilidade subjetiva.

Este argumento é demonstrado na película regida pelo trio William Arntz, Betsy Chasse e Mark Vicente, através do exemplo dos aborígenes americanos. Conta a lenda que, quando da chegada dos povos europeus no continente americano, os habitantes locais não conseguiam enxergar as embarcações que traziam os estrangeiros. Isto se deve ao fato de que os barcos da época eram tão diferentes de tudo anteriormente visto por aquela população que eles não conseguiam formar mentalmente aquelas imagens e dizê-las.

Com o passar do tempo, no entanto, o xamã de um daqueles povos começou a notar ondulações não comuns nas águas e passou a mirar atentamente o horizonte na tentativa de descobrir a causa daquele fenômeno. Assim, após alguns dias, conseguiu finalmente enxergar os barcos. A partir daí, começou a dizer aos seus e suas iguais sobre estes aparelhos. Depois de algum tempo, todos e todas puderam ver o que somente o xamã inicialmente pudera.

Ao debater esta lenda, chegamos a conclusão de que seria mais certo dizer que os aborígenes chegaram a ver as embarcações, mas que, em virtude de suas formas de expressar o mundo, somente conseguiram dizê-las após decorrido algum tempo. As suas vidas, profundamente ligadas à natureza, não permitiam a expressão de obras tão "sofisticadamente" produzidas por seres humanos.

Percorremos até aqui o caminho que terminou por esgotar nossas reflexões neste dia de Ciência e Arte, mas que nos lançou ao infinito ao questionar qual a validade do que vemos e qual é nosso papel enquanto estudantes e pesquisadores ao intervir na
realidade... Qual é a dimensão do nosso poder de modificá-la e o que fazer com isto?